Nkusi Alphonse (Ruanda) foi analista sênior de mídia no Conselho de Governança de Ruanda, editor da New Vision, um dos dois jornais diários mais importantes de Uganda, e professor de Comunicação Social na Universidade Makerere, em Uganda.

Um quarto de século após o terrível genocídio de 1994, Ruanda está virando uma nova página em sua história. Após um longo período de unificação e reconciliação nacional, está investindo no crescimento econômico e concentrando-se em novas tecnologias, com a esperança de tornar-se um centro de tecnologia da informação (TIC) na África.
Alphonse Nkusi
Há 25 anos, o capítulo mais sangrento na história contemporânea da África foi escrito em Ruanda. Em 100 dias, um milhão de pessoas perderam a vida, deixando para trás um milhão de órfãos, sem contar as viúvas e viúvos.
Eu estava em Uganda quando esse drama aconteceu em meu país. O país vizinho ao norte havia me acolhido como refugiado em 1962, quando eu era um jovem de 17 anos. Lá, eu estudei na Universidade de Makerere, formei minha família e morei até 2008. No entanto, desde 1994, tenho dividido meu tempo entre Uganda e Ruanda, para cuidar dos órfãos da minha família e também contribuir para a reconstrução de minha terra natal.
Tudo tinha que ser refeito nesse país ferido. A primeira preocupação da Frente Patriótica Ruandesa, RPF-Inkotanyi, o partido político liderado na época pelo atual presidente ruandês, Paul Kagame, foi frear o genocídio e restaurar a paz e a segurança. “Temos aprendido lições que deveriam nos ensinar sobre como construir nosso futuro”, disse ele recentemente em um encontro de líderes empresariais em Charlotte, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos.
Para construir o futuro, começamos por reaprender a conjugar o verbo “ser” no plural, e a dizer a nós mesmos que somos todos banyarwanda. Esquecer quem é tutsi, quem é hutu, quem é twa. Superar o ódio.
Foi dada prioridade à unidade e à reconciliação. Para este fim, o gacaca, o sistema tradicional de justiça, foi reinstaurado, permitindo que a comunidade julgasse os criminosos e aceitasse seus pedidos de perdão. Por meio desses tribunais tradicionais, os sobreviventes puderam aprender mais sobre as mortes de seus parentes, mas também sobre os criminosos que confessaram suas ações e admitiram sua culpa. Sentenças diferentes foram proferidas, dependendo da gravidade dos crimes cometidos. Alguns foram condenados a serviços comunitários, outros a penas de prisão. Em dez anos, os tribunais gacaca julgaram 1,9 milhões de casos, antes de serem oficialmente fechados em maio de 2012.
Ao mesmo tempo, instituições judiciais públicas foram reabilitadas para julgar os casos mais graves. Em âmbito internacional, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR, sigla em inglês), estabelecido em 8 de novembro de 1994, reconheceu que “genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra foram perpetrados em uma escala assustadora”, atingindo “uma taxa de assassinatos quatro vezes maior do que o apogeu do Holocausto nazista”. Até o momento, o ICTR indiciou 93 indivíduos, considerados como planejadores e perpetradores do genocídio. 80 deles foram julgados, dos quais 23 cumpriram suas sentenças.
IApós o genocídio, outro método tradicional foi utilizado para permitir que os cidadãos participassem dos assuntos públicos. Consiste em um compromisso com as atividades planejadas em um sistema de gestão que prevê contratos denominados imihigo. No passado, eles eram orais e endossados por uma cerimônia. Atualmente, são escritos e assinados, mas sua função permanece a mesma: eles conduzem o indivíduo a realizar uma série de tarefas durante um ano, ao final do qual, seu desempenho é avaliado pela comunidade.
Este método já contribuiu de forma significativa para a melhoria dos serviços públicos na Ruanda de hoje, que optou por uma democracia consensual e pelo compartilhamento de poder.
Com uma taxa média de crescimento de mais de 7% por ano desde 2000, Ruanda é agora um dos principais países africanos em crescimento econômico. Segundo dados oficiais, seus investimentos em agricultura, energia, infraestrutura, mineração e turismo tiraram mais de 1 milhão de pessoas da pobreza.
Este desenvolvimento é acompanhado pela maior integração do país em estruturas econômicas regionais, mas também sua maior participação na comunidade internacional. Com 6.550 funcionários, Ruanda é agora o quarto maior contribuinte para as operações de manutenção da paz das Nações Unidas.
No entanto, primeiramente, o país quer investir nas pessoas para alcançar o desenvolvimento inclusivo, e é por essa razão que coloca as mulheres em primeiro plano da vida pública. Elas pagaram um preço alto durante a primavera negra em Ruanda: entre 100 mil e 250 mil mulheres foram vítimas de estupro e agressão sexual, essas terríveis armas de guerra, reconhecidas pelo ICTR como atos de genocídio. Desde então, muitas delas morreram de Aids, contraída durante os ataques.
A fim de assegurar a proteção das mulheres, uma Lei de Prevenção e Punição à Violência com base em Gênero foi adotada em 2008. Outras leis garantem sua plena participação na vida política e social: ao menos 30% dos cargos são reservados para mulheres em todos os órgãos estatais de todos os níveis. Essa estratégia reduziu a disparidade entre homens e mulheres em um ritmo mais rápido. Atualmente, 62% dos parlamentares, 50% dos ministros e 40% dos funcionários do judiciário são mulheres.
A educação e a saúde são outros dois setores prioritários, que têm absorvido 30% do orçamento nacional por vários anos. A taxa de frequência escolar nos 12 anos de educação compulsória é de 90%, e a cobertura de seguro de saúde é de 87%.
Os serviços de saúde melhoraram consideravelmente em áreas remotas desde a chegada da Zipline drones que, segundo o chefe executivo da startup norte-americana, fez mais de 4 mil entregas de sangue e medicamentos entre outubro de 2016 e abril de 2018.
A educação, também tem mudando, de forma lenta, mas segura, como resultado do uso de novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), particularmente desde o lançamento da iniciativa “Um laptop por criança”, em junho de 2008. Mais de 600 mil laptops foram distribuídos e os alunos adotaram o compartilhamento de seu uso diariamente. O projeto, contudo, enfrentou muitos desafios, sobretudo pela falta de fornecimento de eletricidade nas áreas rurais para o carregamento dos laptops e a falta de recursos para distribuí-los para mais de 2,3 milhões de crianças em idade escolar. Ainda assim, as TICs estão se desenvolvendo a toda velocidade: 4 mil quilômetros de cabos de fibra ótica já foram implantados no país, que tem uma área de superfície de pouco mais de 26 mil quilômetros quadrados. Este ano, espera-se que a internet sem fio e a fibra ótica abranjam 95% do país.
A grande maioria da população já tem acesso a telefones celulares e, dos aproximadamente 13 milhões de habitantes, mais de 4 milhões já podem comprar e pagar suas contas, impostos, e até multas de polícia por meio de aplicativos móveis. O mesmo se aplica aos procedimentos administrativos. Basta visitar o portal Irembo (a palavra significa acesso na língua quiniaruanda) para encontrar a maioria dos serviços governamentais online.
Ruanda está se concentrando no desenvolvimento tecnológico para garantir um futuro melhor. As transações bancárias são facilitadas por meio de serviços móveis. Os líderes de negócios têm acesso ao comércio eletrônico por meio da Plataforma de Comércio Eletrônico Mundial (eWRP, sigla em ingês), lançada em outubro de 2018 pela gigante de comércio eletrônico da China, Alibaba. O transporte urbano é facilitado pelos serviços de carro e motocicletas controlados por meio de aplicativos móveis.
Entre esses últimos, a SafeMotos, apelidada “o Uber das moto-taxis” nasceu em kLab, um centro de inovação tecnológica considerado o mais dinâmico do país. Desde 2012, o centro tem treinado milhares de jovens gratuitamente, ajudando a lançar 60 empresas, quatro das quais tornaram-se líderes em suas áreas de atuação, e duas das quais se expandiram internacionalmente. É um dos vários centros de inovação que se desenvolveram, particularmente em Kigali, a capital, visando a oferecer aos jovens ruandeses novas oportunidades profissionais.
A Cidade da Inovação, que será construída no marco da África50, a plataforma de desenvolvimento de infraestruturas do Banco Africano de Desenvolvimento (AfDB, sigla em inglês), também promete um futuro tecnológico brilhante para Ruanda, que está agora bem posicionada para se tornar uma plataforma regional de TIC. Especialmente desde setembro de 2018, a inteligência artificial (IA) entrou oficialmente no currículo universitário, graças a um mestrado lançado pelo especialista senegalês Moustapha Cissé, chefe do centro de pesquisa em IA do Google em Gana, e pelo Instituto Africano de Ciências Matemáticas (AIMS, sigla em inglês), em Kigali.
Um quarto de século após o genocídio contra os tutsis em Ruanda, a nação dividida, devastada, em ruínas, necessitada de reconstrução e reabilitação, está hoje resolutamente olhando para o futuro e preparando o terreno para o que um dia poderá ser chamado de o milagre de Ruanda.
Assista aos nossos vídeos 7 dias em Kigali, de um documentário dirigido por Mehdi Ba e Jeremy Frey, 2014.
Com este artigo, O Correio participa do Dia Internacional de Reflexão sobre o Genocídio de 1994 contra os Tutsis, em Rwanda, em 7 de abril.
Foto: Marie Moroni – fotógrafa