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A África do Sul de Mandela: realidade ou um sonho distante?

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Uma mulher esperando o ônibus depois do trabalho. Foto da série "Never again" do fotógrafo sul-africano Graeme Williams, Johanesburgo, 2013.

Vinte e cinco anos depois de alcançar a democracia, a África do Sul deu passos gigantescos rumo à formação de uma nação unida. No entanto, superar o racismo e concretizar a visão de Nelson Mandela de uma nação que pertença a todos que nela vivem continuam a ser ideais maravilhosos, mas que ainda requerem muito trabalho, segundo o juiz Jody Kollapen. Tanto árbitro quanto vítima de casos de racismo – foi-lhe recusado um corte de cabelo recentemente, em outubro de 2003! –, esse defensor dos direitos humanos afirma que há boa vontade suficiente para construir a visão de Mandela..

Jody Kollapen, entrevistado por Edwin Naidu, jornalista sul-africano

Vinte e cinco anos após a liberdade duramente conquistada pela África do Sul, o país progrediu na luta contra o racismo? 

Acredito que a resposta para isso deva ser sim, simplesmente porque as divisões raciais que caracterizaram a África do Sul durante o apartheid eram muito fortes, as suspeitas em razão de raça eram profundas, e os casos de violência gratuita contra os negros havia quase atingido um nível de aceitação social. Tudo mudou dramaticamente desde então. No entanto, isso não significa que não existam casos sérios de racismo. A diferença é que, quando ocorrem, um grande número de sul-africanos, negros e brancos, se sentem indignados. Além disso, existe um marco legal para lidar com o racismo.

As medidas legislativas propostas na nova lei para criminalizar atos de racismo são necessárias para promover uma África do Sul unida? 

Idealmente, nós gostaríamos de combater o racismo por meio de iniciativas voluntárias, apelando ao melhor senso das pessoas. Historicamente, a maioria dos sul-africanos concordaria que, na ausência de sanções criminais, as novas leis poderiam ser importantes, ao autorizar que se aja fortemente contra aqueles que acham que podem se livrar com o pagamento de uma multa, uma vez que nenhum processo atual prevê uma ação criminal.

Com base em um marco legal e constitucional no qual estamos dispostos a mandar alguém para a prisão por roubar um pedaço de pão, por que, considerando a hierarquia de seriedade dos atos, não mandamos alguém para a prisão por comportamento racista? Não se pode ser racista e pagar para se livrar. A ideia é usar a lei para lidar com os casos extremos – espera-se que ela seja usada com moderação. 

Os analistas se referem ao racismo como um problema não resolvido, herdado do passado, que a nação não conseguiu abordar de forma adequada. Qual é sua opinião a respeito?

IConcordo que a Comissão Verdade e Reconciliação (Truth and Reconciliation Commission – TRC) nunca abordou o problema do racismo. Lidou com os crimes do apartheid, mas não o apartheid como um crime. A ampla maioria dos sul-africanos que foram vítimas e autores nunca compareceu perante a TRC para falar sobre o racismo durante o apartheid. Infelizmente, a TRC pode ter se deixado levar pela noção romântica de reconciliação, sem abordar o apartheid, a discriminação – e o fato de que não pode haver reconciliação sem transformação social e econômica. Foi uma oportunidade perdida. No entanto, eu não acredito que isso possa ser resolvido por meios legislativos.

O que deve ser feito para garantir que um sentido de unidade prevaleça na África do Sul?

Enquanto a África do Sul continuar sendo a sociedade mais desigual do mundo, e enquanto remontarmos isso como tendo raízes no colonialismo e no apartheid, nós não vamos alcançar esse sentido de unidade. Mesmo que não sejamos capazes de criar a sociedade igualitária que alguns desejam, certamente podemos alcançar uma sociedade mais igualitária. Porém, para que isso ocorra, precisamos ser maduros nos debates sobre questões como recursos, ação afirmativa, acesso à terra, e não podemos ser defensivos. Se não transformarmos a sociedade de uma maneira significativa, esse sentido de unidade pode nos escapar.

Nas eleições de 8 de maio de 2019, alguns políticos usaram a raça como ferramenta eleitoral. Qual é a opinião do sr. sobre a conduta deles?  

Infelizmente, a raça continua a definir nossa ordem social e econômica e, assim sendo, também define a ordem política. É fácil usar a noção de raça para provocar ansiedade. Isso não é exclusivo da África do Sul – já vimos isso na Europa e também nos Estados Unidos. No entanto, considerando a nossa história, é fácil evocar o sentimento de insegurança entre as pessoas. Quando as pessoas têm esses sentimentos, eu não tenho certeza de que são capazes de fazer as escolhas eleitorais corretas.

Espero que alcancemos um nível de maturidade para lidar com isso. O dano de longo prazo causado pelo uso da raça como uma ferramenta de campanha pode não ser quantificável, mas serve para dividir e contradiz o argumento da nação unida que buscamos. 

Em seu discurso de posse, em 10 de maio de 1994, Nelson Mandela clamou pela reconciliação e pelo fim do racismo. Tivemos algum progresso quanto a alcançar a visão dele para a África do Sul?

Realizamos um progresso considerável. Atos simples de racismo ainda ocorrem, mas não são a regra e atraem a condenação universal, o que é muito bom. No entanto, eu vejo um problema real no fato de não haver campanhas contra o racismo nas escolas, públicas ou privadas. Nós temos programas para lidar com a violência baseada em gênero, a xenofobia etc., mas não tenho conhecimento de quaisquer campanhas contra o racismo – certamente precisamos delas.

Segundo a Carta da Liberdade, a África do Sul pertence a todos que nela vivem. Mas esse continua a ser um ideal maravilhoso, e nós permanecemos longe de alcançá-lo. Sim, em alguns aspectos, tivemos progressos. Certamente, somos uma sociedade melhor atualmente, devemos nos consolar com isso, não somos uma sociedade em guerra uns com os outros, e ainda há boa vontade suficiente para construir a visão que Mandela nos deixou.

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Foto: Graeme Williams (Agence VU) 

Jody Kollapen

Juiz em exercício do Tribunal Constitucional da África do Sul desde julho de 2017, Jody Kollapen,  atua como juiz do Supremo Tribunal da África do Sul, em Pretória, desde 2011. Ele é também o presidente da Comissão de Reforma Legislativa da África do Sul. De 2001 a 2009, antes de sua nomeação como juiz, Kollapen atuou como chefe da Comissão de Direitos Humanos da África do Sul.