
Tesouro de arquivo: o álbum inédito de David Seymour
Foto de David Seymour que mostra um camponês idoso aprendendo a escrever, que apareceu na capa d’O Correio da UNESCO de março de 1952. Tirada em 1950, essa foto faz parte de uma série encomendada pela UNESCO para ilustrar a campanha contra o analfabetismo no sul da Itália.
Fotos: David Seymour/Magnum Photos
Texto: Giovanna Hendel, UNESCO
Tudo começou no outono de 2017, com a análise dos acervos audiovisuais da UNESCO, após sua transferência para os arquivos da Organização. A maioria dos acervos mal havia sido indexada em seus quase 70 anos de existência. Caminhar por esses arquivos era um pouco como visitar A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges. Com milhares de documentos nos arquivos, a única maneira de se ter uma ideia de como o acervo foi organizado era, simplesmente, abrir as gavetas dos muitos armários antigos e dar uma olhada em seu interior.
Foi ao abrir uma dessas gavetas que fizemos uma descoberta incrível: um álbum inédito de 38 negativos e textos que os acompanham de David “Chim” Seymour, um dos maiores fotógrafos do século XX. Em 1947, Seymour, juntamente com Henri-Cartier Bresson, Robert Capa, George Rodger e outros importantes fotógrafos, fundaram em conjunto a cooperativa fotográfica Magnum – agora conhecida como Magnum Photos.
IEm 1950, a UNESCO contratou Seymour para fazer uma reportagem sobre uma grande campanha para combater o analfabetismo no sul da Itália. O Correio da UNESCO publicou um artigo sobre o assunto em março de 1952, com as fotografias de Seymour e um texto de Carlo Levi, autor do famoso romance Cristo parou em Eboli (Cristo si è fermato a Eboli), de 1945. O livro tem como base o que o intelectual italiano vivenciou quando, na década de 1930, foi exilado pelas autoridades fascistas em uma região remota, atualmente conhecida como Basilicata. Ele conta a história da vida de seus habitantes, seus costumes, suas crenças e a miséria pela qual passaram.
Após 67 anos, por ocasião da publicação do livro They Did Not Stop at Eboli: UNESCO and the Campaign against Illiteracy in a Reportage by David “Chim” Seymour and Texts by Carlo Levi (Eles não pararam em Eboli: a UNESCO e a campanha contra o analfabetismo em uma reportagem de David “Chim” Seymour e textos de Carlo Levi, em tradução livre), de 1950, que reproduz a totalidade do álbum de Seymour, acompanhado de ensaios analíticos, O Correio apresenta outra perspectiva do trabalho do fotógrafo.
O contexto histórico da reportagem de Seymour foi a luta contra o analfabetismo conduzida pelo governo italiano do pós-guerra e por associações não governamentais, como a União Nacional para o Combate ao Analfabetismo (Unione Nazionale per la Lotta contro l’Analfabetismo – UNLA), O analfabetismo era desenfreado no sul do país. Em algumas regiões, como a Calábria, aonde Seymour viajou para sua reportagem, cerca de 50% da população era analfabeta na época.
Para combater esse flagelo, desde que foi fundada em 1947, a UNLA contribui para a criação de muitas escolas que oferecem aulas de alfabetização básica para crianças e adultos. A iniciativa mais original da organização foi a criação de Centros Culturais Populares em todo o país. Sob a direção de um professor da UNLA, os adultos que já se beneficiaram das aulas de alfabetização podem continuar sua educação, fazendo perguntas sobre suas vidas concretas e também sobre questões mais teóricas. O professor da UNLA tentou respondê-las com o apoio de profissionais da comunidade – como médicos, farmacêuticos, veterinários, párocos etc.
A UNESCO primeiramente se interessou e, depois, apoiou a campanha italiana – claramente considerando-a muito importante, já que a reportagem foi encomendada a um dos grandes fotógrafos da época.
Para sua reportagem, Seymour não apenas tirou centenas de fotos, mas também escreveu notas muito detalhadas para acompanhá-las. Ele forneceu enredos ou temas distintos para grupos de fotografias, e fez até mesmo sugestões para possíveis seleções editoriais. Algumas dessas escolhas, mas não todas, foram seguidas no artigo de 1952 de O Correio, e apenas uma pequena parte do texto foi usada. Depois de 67 anos, é hora de fazer justiça ao que Seymour observou.
Por exemplo, pouca atenção foi dada às observações detalhadas de Seymour sobre a condição das mulheres no contexto em análise. Em particular, no texto que acompanha outra série de fotos de mulheres que aprendem a ler – incluindo a foto de uma mulher aprendendo a ler com sua filha, reproduzida no artigo de 1952 –, Seymour destaca o vínculo da campanha de alfabetização com a aplicação de medidas de oportunidades iguais para promover o progresso social.
O artigo de 1952 de O Correio também reproduziu uma das fotos de Seymour, em que mulheres transportam cargas sobre suas cabeças (neste artigo, reproduzimos outra foto dessa série [p. 26], digitalizada para They did not Stop at Eboli). No entanto, a legenda que acompanha essa foto restringiu seu papel. Ela foi usada para ilustrar o fato de que os trabalhadores deviam ser ensinados em aulas noturnas, após um dia cansativo nos campos.
Da mesma forma, o artigo de 1952 reproduziu uma das fotografias de Seymour de homens que trabalham nos campos. Contudo, mais uma vez, o papel da foto foi reduzido pela legenda, que ilustrou o trabalho árduo do dia, seguido pelas aulas noturnas. Porém, ao ler os comentários de Seymour sobre uma de suas séries de fotografias de homens trabalhando nos campos, é possível apreciar a profundidade de suas observações – uma vez que ele salientava que as campanhas educacionais deviam andar de mãos dadas com as reformas sociais e econômicas.
Esta mise en abyme de O Correio ilustra como os arquivos da UNESCO continuam a lançar luz sobre campanhas passadas que ainda hoje são de grande relevância – ao mesmo tempo em que destaca como essas campanhas foram trazidas à atenção dos leitores.