Construir a paz nas mentes dos homens e das mulheres

Assuntos Atuais

Helen Pankhurst: “O feminismo está no meu sangue”

cou_01_20_news_pankhurst_website.jpg

O movimento feminista italiano "Non Una Di Meno", nascido em 2016, após o movimento argentino de mesmo nome, "Ni Una Menos", para denunciar a violência de gênero e o feminicídio.

Dois anos após o movimento #MeToo explodir nos Estados Unidos, e 25 anos após a Quarta Conferência Mundial sobre Mulheres, em Beijing, Helen Pankhurst avalia as diferentes ondas do feminismo ao longo dos últimos 100 anos. A ativista e autora também escreve sobre os papéis de sua bisavó, Emmeline Pankhurst, e de sua avó, Sylvia, líderes do movimento sufragista, que ajudaram as mulheres britânicas a conquistar o direito ao voto no início do século XX.

Helen Pankhurst

Longe de parecer algo da história, a resistência das sufragistas há 100 anos, com sua demanda por representação política igualitária, parece tão relevante hoje como era na época. Parece haver algo no ar, em todo o mundo, que é uma lembrança daquelas lutas iniciais, que minha bisavó liderou. Isso inclui milhões de feministas novamente marchando nas ruas, desafiando chefes de Estado e governos que estão adotando de forma aberta políticas socialmente regressivas .

A despeito do enorme progresso alcançado, mulheres de todo o mundo ainda lutam por igualdade. Por que, no ritmo atual, teremos que esperar até 2069 para que a disparidade salarial entre os gêneros desapareça no Reino Unido? Por que, em 2015, 11% das mulheres perderam o emprego devido à gravidez? Por que, mundialmente, uma em cada três mulheres sofreu violência física ou sexual?

A jornada de cada país na luta pelos direitos das mulheres é específica àquele país. Porém, ainda assim, há muito de semelhante nas experiências das mulheres ao longo do tempo e do espaço. A desigualdade e a discriminação de gênero continuam a ser uma parte integrante dos nossos sistemas políticos e econômicos, da identidade das pessoas, das culturas e das religiões – do poder.

Uma nova onda

Atualmente, à semelhança do que aconteceu há um século, é a unidade em torno de uma questão em particular que capturou o momento. Atualmente, a questão que passou a definir a quarta onda do feminismo é a violência no local de trabalho. Essa onda é definida principalmente pelo movimento #MeToo, que começou nos EUA em outubro de 2017 e repercutiu em todo o mundo – conhecido diferentemente, como #WatashiMo no Japão e #BalanceTonPorc na França, por exemplo.

Sobretudo, as vozes de indivíduos se manifestando e se contrapondo a normas sociais discriminatórias agora estão sendo adotadas na forma de mudanças estruturais, nos âmbitos nacional e mundial. Após anos de campanha, a histórica Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Violência e Assédio no Trabalho (Convention on Violence and Harassment at Work) foi aprovada em junho de 2019. O esforço agora tem como foco assegurar sua ratificação.

No geral, as ondas são, antes de tudo, uma descrição do impulso criado pelas pessoas que se unem para desafiar o status quo – com um número cada vez maior se tornando parte da força da mudança e, juntas, transformando as estruturas e as políticas da sociedade. O resultado não apenas altera o que as pessoas pensam e como se comportam, mas também leva a mudanças políticas. 

A metáfora das ondas para descrever o feminismo foi introduzida de forma retrospectiva, e permaneceu como uma maneira simples de explicar como a energia e as prioridades mudaram ao longo do tempo.

As mídias sociais, uma ferramenta tanto de opressão quanto de liberdade, têm sido uma característica que define a quarta onda. Essa onda atual tem plena consciência – de fato, é definida por – um entendimento não tanto das diferentes posições políticas que as mulheres podem ter, mas das diferentes camadas de privilégio e vulnerabilidade que as mulheres vivenciam.

O termo interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Cranshaw, coloca isso no centro do palco e exige uma compreensão das diferenças para além do gênero – como idade, status reprodutivo, classe, cor, sexualidade e capacidades.

As mulheres líderes também trouxeram o feminismo para outras causas – por exemplo, na onda atual, o movimento ativista global iniciado por afro-americanas nos EUA Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e o movimento ambientalista da jovem sueca Greta Thunberg.

Também existem duas datas que estão umbilicalmente ligadas ao movimento mundial das mulheres. O Dia Internacional das Meninas, em 11 de outubro, é um lembrete anual das limitações específicas que as meninas enfrentam e da realidade de que suas vozes têm menos probabilidades de serem ouvidas em quaisquer políticas ou decisões – incluindo as que mais afetam suas próprias vidas.

As outras datas importantes do calendário mundial do feminismo caem entre 25 de novembro e 10 de dezembro, que são conhecidos como os 16 dias de Ativismo contra a Violência Baseada em Gênero. Esse período destaca tanto os problemas remanescentes, quanto o ativismo em curso contra a violência baseada em gênero na forma de todos os tipos de abuso sexual. De uma forma ou de outra, o ativismo feminista sempre volta à violência baseada em gênero – o outro lado da falta de poder político, social e econômico das mulheres.

O voto, a chave para todas as mudanças

A partir do final do século XIX e início do século XX, a primeira onda de feminismo se baseou nas demandas das mulheres de séculos anteriores – por ter mais voz. Também se baseou em campanhas nas quais as mulheres eram fundamentais, como o movimento contra a escravidão. Muitas preocupações foram abordadas, incluindo os direitos à educação e ao emprego; a duplicidade de critérios em torno da sexualidade; o tráfico e a violência contra as mulheres; a moderação (campanha contra o álcool); e protestos anticoloniais e antibélicos liderados por mulheres. No entanto, essa onda fundamental é mais conhecida por campanhas em torno da cidadania, o direito de votar e de ser votada no parlamento. O voto foi visto, na época, como a chave para todas as outras mudanças.

Essa primeira luta foi particularmente amarga no Reino Unido. Emmeline Pankhurst (1858-1928), a líder do movimento sufragista e minha bisavó, estava na vanguarda dessa luta – que começou em Manchester, em 1903. Como consequência disso, ela foi, e permanece sendo, uma representação mundial icônica da resistência das mulheres.

O movimento teve como resultado centenas de milhares de pessoas, principalmente mulheres, marchando, mas também a destruição de propriedades, milhares de presos, alimentados à força e morrendo pela causa. Como líder do movimento, a coragem de Emmeline, sua determinação e sua visão de igualdade de gênero continuaram a inspirar. Ela foi, e continua a ser, uma personagem controversa, mesmo entre os que apoiam seus objetivos.

Todas as três filhas de Emmeline se envolveram no movimento – sua segunda filha, Sylvia (1882-1960), era minha avó. Sylvia discordava cada vez mais da liderança de sua mãe no movimento – opondo-se à sua autoritária tomada de decisões, com foco nas mulheres mais ricas e na militância. Ela também acreditava que a campanha pelo voto precisava ser realizada juntamente com estratégias por meio das quais as mulheres trabalhadoras pudessem enfrentar suas lutas diárias.

Além disso, Sylvia defendeu a importância do sufrágio universal – em uma época em que muitos homens da classe trabalhadora também não podiam votar – e foi uma pacifista sincera no que dizia respeito à Segunda Guerra Mundial. Após a invasão da Etiópia por Mussolini, essa se tornou outra causa que assumiu. Ela se mudou para a Etiópia, onde foi enterrada com honras de Estado.

As divisões em nossa família refletem o quão pessoal o político pode ser, e as rupturas ao longo da história dos direitos das mulheres.

A segunda onda do feminismo, a partir da década de 1960, destacou direitos econômicos como a igualdade de remuneração e a contestação às hierarquias de gênero no trabalho, que resultavam em mulheres sendo levadas a empregos mal remunerados. A liberdade sexual e a escolha individual caracterizaram a terceira onda, a partir da década de 1990 – 30 anos depois. O período também viu compromissos governamentais e intragovernamentais mais amplos para abordar questões de gênero. As Conferências Mundiais sobre a Mulher, promovidas pelas Nações Unidas, ocorreram nesse período.

Influências pessoais

As Pankhurst foram mulheres extraordinárias em sua época, mas como elas me influenciaram, uma mulher no século XXI? Sem dúvida, eu sou moldada por ter pensado nas diferenças de opinião dentro de minha família e também pelo fato de ter sido criada na Etiópia. Em 1992, escrevi um livro sobre mulheres na Etiópia, com base em minha tese, chamada Gender, Development and Identity (Gênero, desenvolvimento e identidade, em tradução livre).

No ano passado, voltei-me às experiências das mulheres no Reino Unido com o livro Deeds Not Words: The Story of Women’s Rights, Then and Now (Ações, não palavras: a história dos direitos das mulheres; antes e agora, em tradução livre). Ele considera o quanto nós avançamos ao longo dos últimos 100 anos, bem como possibilitou inúmeras discussões com o público, aqui e no exterior.

Se o feminismo está no meu sangue, o mesmo acontece com a compreensão do poder da solidariedade e do propósito criado pelas marchas. A celebração do feminismo mundial em torno dos eventos do Dia Internacional da Mulher e a March4Women – iem Londres, em particular – há muito tempo são destaques do meu ano.

 

No dia 8 de março deste ano, estarei marchando como muitas fizeram e continuarei a fazê-lo por todo o mundo – com faixas erguidas bem alto. Ainda temos um longo caminho a percorrer..

 

Saiba mais: Women's issues in the Courier

Fotos: Changing the Future for Women in Greater Manchester e Karl Mancini photographer

Helen Pankhurst

Ativista e autora da área de direitos humanos, Helen Pankhurst é consultora da CARE International, professora da Universidade de Manchester e chanceler da Universidade de Suffolk. Ela divide seu tempo entre a Etiópia e o Reino Unido..