
O mercado de arte: uma vítima de seu próprio sucesso
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O muito lucrativo mercado negro de obras de arte e antiguidades floresceu graças ao grande interesse dos compradores, às lacunas da legislação, à cumplicidade dos profissionais do setor, ao aumento da pilhagem nos países em situação de conflito e ao desenvolvimento de plataformas de venda online.
Marc-André Renold
Professor de artes e direito do patrimônio cultural e diretor do Centro de Arte-Direito da Universidade de Genebra, e presidente da Cátedra UNESCO de Direito Internacional de Proteção do patrimônio Cultural.
A espantosa quantia de US$ 64 bilhões – foi o quanto o mercado internacional de arte e bens culturais gerou em 2019, segundo o Art Market Report 2020 (Relatório do Mercado Mundial de Arte). Esse número reflete uma ânsia por obras de arte e antiguidades que tem crescido de forma constante nos últimos anos.
O lucrativo mercado negro de obras de arte e antiguidades floresceu graças ao entusiasmo dos compradores, às lacunas da legislação, à cumplicidade dos profissionais do setor, ao aumento da pilhagem nos países em situação de conflito e ao desenvolvimento de plataformas de venda online.
Paradoxalmente, esse interesse também representa uma ameaça à integridade dos bens culturais. Isso ocorre porque o aumento da demanda não leva apenas ao desenvolvimento de um mercado de arte legítimo. Também incentiva roubos a museus, coleções particulares e prédios religiosos – ou mesmo a destruição irremediável de sítios arqueológicos e a pilhagem de prédios e monumentos antigos.
Na ausência de estatísticas, é difícil mensurar com precisão a escala do mercado ilícito. O recente recorde de apreensões policiais na Europa, no entanto, fornece uma ideia de sua extensão. Dois exemplos recentes: em outubro de 2019, a Operação Medicus, com foco na Bulgária, permitiu que a Europol confiscasse 4,6 mil objetos e prendesse 8 pessoas. Um mês depois disso, 10 mil itens de arte foram apreendidos e 23 pessoas foram presas em outra operação, dessa vez com foco na Itália.
Lavagem de arte roubada
O envolvimento de atores do setor – comerciantes, leiloeiros, curadores de museus e compradores individuais –, de boa-fé ou não, desempenha um papel fundamental nesse comércio de bens roubados. A cumplicidade daqueles que fornecem documentos e certificados de origem falsos é um elemento essencial nas estratégias de lavagem de objetos, como o é a ausência de regulamentação específica e de meios adequados para fazer cumprir a lei.
Uma vez introduzidos no mercado de arte legal, por meio de galerias e casas de leilões, as obras de arte e os bens culturais que foram saqueados são difíceis de serem identificados. Objetos de proveniência duvidosa podem ganhar visibilidade ao serem vendidos em galerias ou expostos em museus.
A multiplicação de conflitos nos últimos anos ampliou ainda mais esse fenômeno. A Primavera Árabe de 2011 e as guerras civis que se seguiram funcionaram como catalisadores para o roubo sistemático de antiguidades, cometido por habitantes empobrecidos ou por grupos criminosos organizados.
Os museus, os sítios arqueológicos e os monumentos que compõem o patrimônio cultural único da Síria e do Iraque foram devastados por saqueadores nessas regiões. Em sua Resolução 2347, de março de 2017, o Conselho de Segurança das Nações Unidas expressou sua preocupação e observou que o tráfico de antiguidades parece ser uma das fontes de financiamento do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL, também conhecido como Daesh). A Resolução também destaca o uso crescente da internet para a compra e a venda desses bens.
O desenvolvimento das plataformas de vendas online e das redes sociais facilitou consideravelmente a venda de bens culturais removidos ilegalmente. Avanços tecnológicos, como a detecção por sonar e robôs subaquáticos, também tornaram possível acelerar escavações ilegais – inclusive em locais de difícil acesso –, tornando mais fácil o trabalho dos saqueadores.
Sanções que não intimidam
Diante desse aumento no tráfico ilícito, os países reagiram adotando regulamentações que, muitas vezes, são inspiradas diretamente pelas convenções internacionais da UNESCO. No entanto, suas ações encontraram vários obstáculos, a começar pelas leis que regulamentam as exportações. Em geral estas são muito rígidas e, portanto, difíceis de serem aplicadas. Além disso, as medidas penais, quando existem, são normalmente acompanhadas de penas pouco dissuasivas.
Outro problema é que o cumprimento às leis existentes em geral não é recompensado de forma adequada. Muitos artefatos são descobertos por acidente, como resultado de atividades agrícolas ou de obras de construção. No entanto, na falta de uma compensação pela interrupção da atividade econômica provocada pelas escavações, aqueles que descobriram objetos muitas vezes preferem destruí-los ou colocá-los no mercado negro. Por fim, com frequência as medidas legais e regulatórias implementadas pelos países são ineficazes no que diz respeito ao controle e à regulação da atividade dos atores no mercado de arte.
Sem um esforço dos Estados para remediar essas lacunas jurídicas e sem uma maior mobilização da comunidade internacional, existe o risco de que o tráfico de bens culturais continuará a florescer.
Leia mais:
UNESCO e União Europeia: união de forças para combater o tráfico
Uma resolução histórica para proteger o patrimônio cultural. O Correio da UNESCO, out./dez. 2017.
Restringir os despojos da guerra. O Correio da UNESCO, out./dez. 2017.
Stop the art thieves! The UNESCO Courier, Apr. 2001.
Tracking down looted art. The UNESCO Courier, Mar. 1999.
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