
Países Baixos: museus confrontam o passado colonial do país
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O pioneiro Museu Nacional das Cultural do Mundo (Nationaal Museum van Wereldculturen – NMVW), nos Países Baixos, foi um dos primeiros museus europeus a desenvolver mecanismos para repatriar artefatos saqueados de suas colônias.
Catherine Hickley
Jornalista freelance baseada em Berlim, ela colabora regularmente com o The Art Newspaper e com o New York Times, e é autora do livro The Munich Art Hoard: Hitler’s Dealer and His Secret Legacy (O acumulador de arte de Munique: o negociante de Hitler e seu legado secreto, em tradução livre)..
Em 2014, o Tropenmuseum, em Amsterdã, foi ameaçado de fechamento quando o Ministério de Relações Exteriores disse que retiraria o financiamento da instituição a qual pertende, o KIT Royal Tropical Institute.
O museu acabou por ser salvo ao criar uma nova entidade para administrar as coleções etnográficas nacionais. O NMVW foi fundado em 2014 pela junção entre o Tropenmuseum, o Museu Volkenkunde, em Leiden, e o Afrika Museum, em Berg en Dal. Ele também supervisiona o Wereldmuseum de Roterdã, cuja coleção pertence à cidade.
No entanto, durante os meses em que um ponto de interrogação pairou sobre o futuro do Tropenmuseum, foram realizadas algumas análises importantes entre os guardiões das coleções etnográficas holandesas.
“Esta situação de crise foi um alerta para todas essas instituições”, explica Stijn Schoonderwoerd, diretor do NMVW. “Ela nos levou a questionar nossa história colonial e vimos que tínhamos o potencial para fazer muitas perguntas sobre identidade, controle, poder, desigualdade e descolonização”.
À frente da curva
Essas questões não são exclusivas ao NMVW – ganharam destaque por toda a Europa nos últimos anos. Em 2017, o presidente francês Emmanuel Macron prometeu restituir permanentemente o patrimônio africano que se encontra em museus franceses, em um discurso em Uagadugu, em Burkina Faso. Ele encomendou um relatório do estudioso senegalês Felwine Sarr e do historiador de arte francês Bénédicte Savoy, o qual foi publicado em 2018 e recomendou a devolução de artefatos da África Subsaariana presentes em museus franceses. Em junho de 2020, um projeto de lei que permite a restituição de 26 artefatos saqueados de Benim, e de uma espada histórica do Senegal, foi o primeiro passo legislativo para cumprir este compromisso.
Em março de 2019, na Alemanha, os ministros da Cultura de 16 países chegaram a um acordo sobre seu próprio conjunto de diretrizes. Prometeram criar as condições para a repatriação de artefatos que se estão em coleções públicas e que foram levados de suas antigas colônias “de maneiras que são legal ou moralmente injustificáveis atualmente”. No Reino Unido, o Institute of Art and Law (Instituto de Artes e Direito) está elaborando diretrizes para museus, que foram encomendadas pelo Arts Council England (Conselho de Artes da Inglaterra), com publicação prevista para o outono de 2020.
Contudo, o NMVW estava um pouco à frente da curva. Um trabalho de doutorado realizado em 2016 pelo pesquisador Jos van Beurden, publicado em inglês como Treasures in Trusted Hands: Negotiating the Future of Colonial Cultural Objects (Tesouros em mãos confiáveis: negociar o futuro dos objetos culturais coloniais, em tradução livre), deu ainda mais ímpeto ao debate holandês sobre os artefatos da era colonial. “O trabalho teve um grande impacto”, diz Henrietta Lidchi, curadora-chefe do NMVW.
O museu começou a trabalhar em suas diretrizes para repatriação em 2017. Embora tenham ocorrido repatriações ao longo das décadas, as reivindicações anteriormente foram tratadas de forma pontual (ad hoc). “Estamos mudando de cenários caso a caso para torná-los mais sistemáticos e equitativos”, discorre Lidchi. “É necessária uma mudança estrutural para que isso aconteça”.
As diretrizes foram adotadas em 7 de março de 2019 e publicadas em um documento denominado Return of Cultural Objects: Principles and Process (A devolução de objetos culturais: princípios e processo, em tradução livre). O documento foi concebido para expressar “a missão geral do museu de abordar as histórias longas, complexas e emaranhadas que resultaram nas coleções mantidas pelo museu”. O documento inclui um “compromisso de tratar e avaliar com transparência as reivindicações para devolução de objetos culturais segundo padrões de respeito, cooperação e oportunidade”.
Sem protestos de cidadãos
As diretrizes abrangem mais do que o patrimônio roubado – incluem o compromisso de devolver artefatos de grande valor para as comunidades de origem, independentemente de como foram obtidos. Os requerentes também não são obrigados a provar que possuem um museu adequado para abrigar os objetos devolvidos – um fator citado com frequência nas discussões mais amplas como um argumento contra a repatriação.
A resposta do público às novas políticas do museu tem sido positiva. “Para meu alívio, quando apresentamos nossa posição não houve muita oposição e nenhum protesto de grupos políticos ou cidadãos dizendo que deveríamos permanecer com todos esses objetos”, disse Schoonderwoerd.
O surgimento de uma política nacional poderia mudar isso. O diretor do museu não descarta o risco de que grupos de extrema direita possam se manifestar contra a repatriação de artefatos de museus holandeses para alimentar o sentimento nacionalista.
No rastro de objetos da era colonial
O museu supervisiona cerca de 450 mil itens no total. Lidchi diz que a “estimativa geral” do NMVW é de que cerca de 40% da coleção foi adquirida em contextos coloniais. Desde 2019, pela primeira vez, o museu conta em tempo integral com dois pesquisadores especializados na proveniência de artefatos. Além disso, para financiar e acelerar essa tarefa gigantesca, o museu solicitou subsídios governamentais para pesquisa no valor de € 4 milhões.
Em colaboração com o Rijksmuseum de Amsterdã e com o Expertisecentrum Restitutie Cultuurgoederen en Tweede Wereldoorlog (Centro Especializado na Restituição de Bens Culturais e Segunda Guerra Mundial), do Instituto NIOD para Estudos de Guerra, Holocausto e Genocídio, o NMVW se concentrará inicialmente na Indonésia, com projetos para consolidar a pesquisa em, por exemplo, expedições militares da era colonial e redes de casas de comércio.
O museu ainda não recebeu nenhuma reivindicação oficial por meio de seus novos canais – talvez, em parte, devido à pandemia do coronavírus. No entanto, a instituição está em negociações com vários grupos de requerentes em potencial, incluindo comunidades indígenas da América do Norte. O NMVW também tem uma colaboração de longa data com o Museu Nacional da Indonésia, a fim de compartilhar informações e tornar a coleção acessível de forma conjunta.
A adaga de um herói indonésio devolvida
Em março de 2020, com base em pesquisas conduzidas pelo museu, o ministro da Cultura holandês devolveu ao embaixador da Indonésia em Haia uma kris ou keris – uma grande adaga – incrustada em ouro. Ela pertenceu ao príncipe Diponegoro, um líder rebelde javanês e herói indonésio que travou uma guerra de cinco anos contra o domínio colonial holandês, de 1825 a 1830. Alguns de seus pertences, incluindo uma sela e uma lança, foram repatriados para a Indonésia na década de 1970, seguindo a recomendação de um comitê de especialistas holandeses e indonésios. A keris só pôde ser localizada muito depois disso
O NMVM também é membro do Benin Dialogue Group (Grupo de Diálogo de Benim), fundado em 2007, que inclui museus europeus com coleções de artefatos beninenses, saqueados por tropas britânicas em 1897, e representantes nigerianos.
Os museus recentemente receberam financiamento para criar um inventário digitalizado dos chamados “bronzes de Benim” [que vieram do antigo reino de Benim, atualmente no sul da Nigéria] e também concordaram em emprestar coleções para a cidade de Benim, na Nigéria, de forma rotativa – embora não tenham chegado a solicitar sua repatriação permanente. “Não tenho dúvidas de que haverá uma repatriação de objetos saqueados de Benim de museus europeus para a Nigéria”, disse Schoonderwoerd.
As críticas ao NMVW vêm principalmente daqueles que acreditam que o processo de restituição está avançando muito lentamente. Em junho de 2020, um grupo de ativistas atingiu a fachada do Tropenmuseum com bolas de tinta branca para protestar contra os restos mortais em sua coleção – ao mesmo tempo em que, em um comunicado, reconheciam o compromisso do museu em lidar com seu passado colonial.
No entanto, Schoonderwoerd ressalta que os gestores do museu são apenas guardiões da coleção nacional. Qualquer repatriação deve ser autorizada pelo Ministério da Cultura, o que geralmente envolve morosas negociações diplomáticas.
“Como organizações do patrimônio, nós nos tornamos parte de processos políticos que não controlamos”, ressalta. “Algumas vezes, somos acusados de nos esconder atrás do Estado. Porém, não podemos simplesmente devolver as coisas por nossa própria vontade. A restituição não é um ato do patrimônio, mas um ato político".
Leia mais:
Restituição de objetos de arte: alguns exemplos
A UNESCO facilita as negociações entre os países
The return of the Aksum Obelisk. The UNESCO Courier, Jul. 2008.
The Getty’s mea culpa. The UNESCO Courier, Apr. 2001.
Homecoming for the totem poles. The UNESCO Courier, Apr. 2001.
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