
Racismo: o enfrentamento do impensável
cou_03_20_idee_tadjo_web.jpg

A brutalidade policial que entrou em foco nos Estados Unidos na primavera de 2020 gerou uma onda de protestos que se estendeu para muito além das fronteiras do país. O racismo, seja sistêmico ou “comum”, permanece profundamente enraizado nas mentes e no funcionamento das sociedades contemporâneas, defende a autora.
Véronique Tadjo
Escritora, acadêmica e artista que nasceu em Paris e cresceu em sua terra natal, a Costa do Marfim, Tadjo ié autora de vários livros, incluindo Loin de mon père (Longe de meu pai, em tradução livre), seu romance mais recente. Ela agora divide seu tempo entre Londres e Abidjã.
As imagens de George Floyd, um homem algemado que foi sufocado e morto por um policial em Minneapolis, em 25 de maio de 2020 – publicadas na internet e, depois, captadas pela mídia internacional –, geraram protestos em todo o mundo e trouxeram a questão do racismo de volta aos holofotes.
Por um momento, podemos ter alimentado a ilusão de vivermos em uma era pós-racial. As eleições de Nelson Mandela como o primeiro presidente negro da África do Sul, em 1994 (até 1999), e de Barack Obama, o primeiro chefe de Estado negro dos Estados Unidos, em 2009 (até 2017), foram os principais momentos que contribuíram para esse sentimento. Um otimismo semelhante prevaleceu na França, onde os valores republicanos pareciam ter superado a noção de raça, que estava condenada à obsolescência.
No entanto, o racismo “comum” nunca deixou de permear nossas vidas cotidianas, alimentando-se de preconceitos e de ideias pré-concebidas. Por vezes sutil, muitas vezes explícito, segundo Évelyne Heyer, antropóloga genética e etnobióloga francesa, e Carole Reynaud-Paligot, historiadora que trabalhou em uma exposição (2017-2018) no Musée de l’homme (Museu da Humanidade), em Paris, o racismo se assenta em três pilares. São eles: “Categorizar os indivíduos em grupos (o que é um reflexo do cérebro humano, embora os critérios de classificação variem de acordo com os contextos sócio-históricos); hierarquizá-los (alguns são valorizados ou desvalorizados por razões arbitrárias); e torná-los essenciais – ou apresentando essas diferenças como intransponíveis ou inevitáveis, porque são hereditárias”.
Rejeição do Outro
Essa rejeição do Outro assume muitas formas. Não poupa celebridades – manifestando-se, por exemplo, na zombaria direcionada a um jogador de futebol negro ou na utilização das redes sociais contra políticos negros. Muitas vezes, porém, as vítimas são os cidadãos comuns – na medida em que enfrentam dificuldades para encontrar moradia ou emprego devido à sua origem racial. Essa atitude discriminatória geralmente é rejeitada pelo público em geral. Reconhecida como prejudicial à coesão social, é correta ou incorretamente atribuída ao pensamento reacionário.
Segundo o psiquiatra e filósofo Frantz Fanon (1925-1961), um dos principais defensores da descolonização, “o racismo não é o todo, mas o mais visível, o mais cotidiano e, para não atenuar o assunto, o elemento mais cru de uma determinada estrutura”.
É essa estrutura que chamamos de “racismo sistêmico”. Mais pernicioso e, portanto, mais difícil de ser exposto, ele está oculto até mesmo no funcionamento do Estado. Para os que nunca estiveram diante dessas formas de racismo, é fácil negar que elas sequer existem. Não há leis que punem as diferentes formas de discriminação? Na França, a primeira lei nacional contra o racismo, que data de 1º de julho de 1972, foi alterada e melhorada diversas vezes. Além disso, existem várias convenções europeias e internacionais que podem ser utilizadas para condenar os abusos. No entanto, as leis por si só não são suficientes para conter a discriminação cotidiana. É preciso fazer mais.
O racismo sistêmico
A extensão do racismo sistêmico não pode ser compreendida reduzindo-o a atos isolados. Trata-se da inferiorização de certos grupos minoritários, historicamente considerados subalternos – pelo legado da escravidão e/ou da colonização. Em uma sociedade dita democrática, o racismo se infiltra no sistema de aplicação da lei (perfilamento racial e violência policial), no sistema prisional (maior número de presos e sentenças mais pesadas), no sistema educacional (insucesso escolar), no sistema de saúde (acesso limitado à assistência médica), no mercado de trabalho (maiores taxas de desemprego) e na mobilidade social (bairros e conjuntos habitacionais da classe trabalhadora) – a lista não é exaustiva.
Segundo a historiadora Laure Murat, diretora do Centro de Estudos Europeus e Russos da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), o racismo sistêmico é “um monopólio institucional que, na maioria das vezes, perpetua uma cultura – [que é] sexista, racista, violenta”.
As manifestações que ocorrem em todo o mundo em apoio ao movimento norte-americano Black Lives Matter (Vidas Negras Importam – BLM, na língua original) são a expressão de uma consciência sobre a natureza multifacetada do racismo – que abre caminho para diferentes formas de abuso (como antissemitismo, islamofobia, homofobia, sexismo, transfobia etc.). O contexto da pandemia da COVID-19 – marcado por sua experiência coletiva de confinamento, sofrimento e morte – sem dúvida acentuou a sensibilidade pública para essa tragédia.
O BLM é parte da história da luta dos negros norte-americanos pela igualdade racial – desde o início da escravidão nas plantações dos estados do Sul dos Estados Unidos, no século XVII, até a luta pelos direitos civis, na década de 1960 – que acabou com a segregação em locais públicos, no transporte e no sistema educacional.
Esse movimento retira sua força de lutas e vitórias passadas, mesmo que estas não tenham levado à erradicação do racismo da sociedade norte-americana. Contudo, é impressionante observar que ele conseguiu mobilizar as massas em torno da ideia de uma internacionalização da injustiça social. Seja na França, no Reino Unido, na Alemanha, na Austrália ou na África do Sul, as denúncias de brutalidade policial e outras formas de exclusão se multiplicaram – e levaram à rejeição coletiva da opressão, da humilhação e da dominação.
Resistência à mudança
No entanto, alguma resistência à mudança é esperada. Após os cartazes e os slogans contra o racismo, grandes marcas comerciais usando uma publicidade mais inclusiva, e livrarias correndo para promover obras de autores negros e livros sobre racismo, uma reviravolta é possível.
Diante dos danos materiais causados durante muitas dessas manifestações e do medo de desordem pública, o apoio à causa antirracista pode diminuir – e dar lugar a confrontos entre grupos hostis, qualquer tipo de desafio ao status quo ou a confrontos violentos com as forças de segurança.
Nesse contexto, a derrubada de monumentos ao racismo já se mostrou polêmica. O fato de o BLM não ter um verdadeiro centro também é um obstáculo. O movimento parece ter se dividido e está tendo dificuldade para controlar o extremismo de uma minoria de militantes muito ativos.
Para transformar a sociedade, o ímpeto da solidariedade deve ir além de protestos e símbolos. “No entanto, se não houvesse ‘divisões’ e se todos estivessem sempre de acordo em tudo, nós não precisaríamos de democracia”, nos lembra Jan-Werner Müller, professor de política da Universidade de Princeton, em um editorial do jornal francês Libération, de 30 de junho de 2020. “A democracia é uma questão de regulamentar os conflitos (pelas constituições e, em particular, pelos direitos fundamentais). Em uma democracia, o consenso não é um valor em si”.
Lutar contra o racismo não se trata de ajudar as pessoas negras, mas de construir uma sociedade na qual as diferenças sejam respeitadas e na qual haja igualdade de oportunidades para todos.
Leia mais:
The UNESCO Courier against Racism. (O Correio da UNESCO contra o racismo): uma seleção de números e artigos da revista sobre o tema.
The International Coalition of Inclusive and Sustainable Cities (ICCAR) (Coalizão Internacional de Cidades Inclusivas e Sustentáveis – ICCAR)
Assine O Correio da UNESCO Courier para artigos instigantes sobre assuntos contemporâneos. A versão digital é totalmente gratuita.