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Redes sociais: o novo El Dorado dos traficantes

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An ancient mosaic, illegally obtained from Syria, offered for sale on Facebook.

Os sites de leilões e as redes sociais se tornaram, nos últimos anos, eixos do tráfico ilícito de bens culturais. Embora o Facebook tenha proibido recentemente o comércio de antiguidades em sua plataforma, ainda há muito a ser feito para coibir esse mercado relativamente recente, que oferece aos traficantes uma vitrine mundial..

Tom Mashberg
Escritor, editor e jornalista que se concentra em furtos e na repatriação de objetos artísticos e antiguidades, ele contribui regularmente para a seção de cultura do jornal The New York Times. Mora em Los Angeles e é também coautor de Stealing Rembrandts: The Untold Stories of Notorious Art Heists (Roubos de Rembrandts: as histórias não contadas de notórios roubos de arte, em tradução livre)..

Em junho de 2020, após mais de dois anos de queixas formais de rastreadores de antiguidades, o Facebook finalmente reconheceu que seu site estava sendo usado como um grande bazar online para a venda de artefatos saqueados do Oriente Médio.

O conglomerado de mídia social anunciou uma grande mudança de política, declarando que “para manter esses artefatos e nossos usuários seguros, nós, agora, proibimos a troca, a venda ou a compra de todos os artefatos históricos no Facebook e no Instagram”.

Já era hora. De acordo com o Projeto de Pesquisa sobre o Tráfico de Antiguidades e Antropologia do Patrimônio (Antiquities Trafficking and Heritage Anthropology Research Athar, a palavra árabe para “antiguidades”) – um grupo de vigilância cujos especialistas trouxeram o escândalo à atenção do Facebook já em 2014 –, as plataformas online pouco fizeram para impedir o comércio ilícito de relíquias ou outros objetos.

A crise da COVID-19 agravou o problema, levando cada vez mais negociantes e compradores para a internet – onde estão descobrindo que, ao ingressar em certos grupos não monitorados do Facebook, eles podem entrar com facilidade no mercado ilegal.

Um flagelo mundial

O Facebook não é o único mercado online no qual antiguidades ilegais estão sendo comercializadas. Uma grande variedade de sites de leilões – nomeadamente eBay, Invaluable, Catawiki e GoAntiques – também estão sendo usados para localizar compradores, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. Teoricamente, a política de uso desses sites proíbe essas vendas.

Por exemplo, a política do eBay afirma: “Anúncios de antiguidades devem incluir a proveniência ou o histórico de propriedade do item e, quando possível, uma foto ou imagem digitalizada de um documento oficial que inclua o país de origem do item e os detalhes legais da venda. O item também deve ser aprovado para importação ou exportação”.

No entanto, em termos práticos, impedir as vendas que violam essas regras é praticamente impossível.

“Devido ao grande número de objetos vendidos online e à velocidade das transações, o acompanhamento regular e a pesquisa sobre o mercado online são impossíveis para muitas autoridades policiais nacionais”, explica Neil Brodie, pesquisador sênior da Universidade de Oxford, que é especialista em arqueologia em risco e escreveu extensivamente sobre o comércio online.

A quantidade de itens ilegais leiloados online seria difícil de ser estimada. Em um relatório de 2019 para a Comissão Europeia sobre o comércio ilícito na Europa, Brodie estimou que, no Reino Unido, em 2018, provavelmente foram vendidos cerca de 52.560 lotes de antiguidades, totalizando € 1,8 milhão. Muitas dessas transações são ilegais, acrescenta.

A UNESCO e suas forças de segurança parceiras – entre elas a Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), a Organização Mundial das Alfândegas (WCO) e o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) – também criticaram a expansão do comércio online.

Em uma conferência online realizada em 26 de junho de 2020, com o objetivo de tomar novas medidas para frustrar essas vendas, Ernesto Ottone Ramírez, diretor-geral adjunto de Cultura da UNESCO, disse: “Devemos dobrar nossos esforços na luta contra este flagelo mundial”. O Facebook, o eBay e outros sites também enfrentaram questionamentos sobre seu papel como plataformas de vendas ilícitas.

Pilhagem por encomenda

O tráfico de antiguidades começou no Facebook por volta da época da Primavera Árabe de 2011, dizem os especialistas. Segundo Amr Al-Azm, professor de história e antropologia do Oriente Médio na Shawnee State University, em Ohio, EUA, e codiretor do Projeto Athar, foi nesse período que o Estado Islâmico (EI) começou a profissionalizar o saque de sítios arqueológicos no Iraque e na Síria, usando o Facebook como uma ferramenta principal.

“As mídias sociais reduziram as barreiras de entrada no mercado”, disse ele. Em setembro de 2020, Al-Azm e Katie A. Paul, arqueóloga, antropóloga e codiretora do Athar, estimaram haver pelo menos 120 grupos no Facebook – a maioria deles em árabe – conectados ao comércio ilegal de antiguidades do Oriente Médio. No total, eles têm centenas de milhares de membros.

Os sites de leilões também fazem parte do problema. No entanto, como observou Paul, no eBay, por exemplo, “não há centenas de milhares de pessoas seguindo um único vendedor ilegal de antiguidades, ao contrário do que se pode ver nesses grupos do Facebook, que contam com centenas de milhares de pessoas”.

“É uma questão de escala”, acrescentou ela. “O eBay tem cerca de 182 milhões de usuários, enquanto o Facebook tem mais de 2 bilhões e é acessível em todos os países em desenvolvimento”.

Normalmente, explicou Al-Azm, aqueles que procuram comprar ou vender artefatos iniciam consultas em um grupo do Facebook e concluem as negociações migrando para aplicativos criptografados. Os compradores também divulgam amplamente pedidos por objetos desejados, acrescenta, criando uma situação que o professor chama de “pilhagem por encomenda”.

Em um relatório de 2019, a Athar divulgou inúmeras fotos e vídeos retirados de grupos do Facebook que ofereciam mosaicos, elementos arquitetônicos, estátuas, máscaras funerárias egípcias e até caixões faraônicos.

“Eles literalmente postarão fotos de catálogos de leilões e dirão: ‘Veja, é por este valor que estas coisas podem ser vendidas, então, vá em frente, pessoal’”, salientou Paul. Os traficantes online também tentam tranquilizar os compradores ilícitos de que eles estão obtendo itens genuínos, ao publicar fotos ou vídeos que mostram os objetos sendo descobertos no local, acrescentou ela. Alguns chegam a postar instruções detalhadas para aspirantes a saqueadores sobre como localizar sítios arqueológicos vulneráveis e desenterrar tesouros em potencial.

Como um fator ainda mais desanimador, observou Paul, os algoritmos do Facebook “recomendam” grupos e sites dedicados ao tráfico de antiguidades a seus usuários. “Cada vez que o Athar adere a um grupo de tráfico de antiguidades para verificá-lo, o algoritmo do Facebook recomenda outros três”, disse ela.

O Athar percebeu outra tendência: leilões ao vivo, com lances em tempo real, enquanto os saqueadores retiram os artefatos do chão para demonstrar sua autenticidade. Quando um comprador arremata um item, os saqueadores revelam como ele pode ser falsamente rotulado e encaminhado via países de trânsito.

No caso de o Facebook ou um site de leilões banir um vendedor, Al-Azm e outros pedem que não excluam as páginas – porque elas constituem evidências cruciais para autoridades policiais e especialistas em patrimônio. No entanto, citando questões relacionadas à privacidade de dados, as plataformas online afirmam que não pretendem preservar qualquer conteúdo removido.

A onda de antiguidades que chega ao mercado online provavelmente continuará. Alguns traficantes mantém a posse de antiguidades saqueadas por anos, esperando que a atenção diminua – ou falsificam documentos sobre os itens antes de colocá-los à venda.

Nesse contexto, as fotos e os vídeos dos objetos furtados são documentos de fundamental importância. “Eles são evidências digitais que serão de grande valor para os acadêmicos e são potencialmente essenciais para os esforços futuros de repatriação”, concluiu Al-Azm.

Leia mais:

Restringir os espólios da guerra, O Correio da UNESCO, out./dez. 2017.

 

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