
Traficantes de arte: pilhagem das identidades dos povos
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Meio século após sua aprovação, a Convenção da UNESCO de 1970 contra o tráfico ilícito de bens culturais ainda é um importante instrumento para conter esse flagelo. Nos últimos 50 anos, a luta contra o comércio clandestino se intensificou, e a conscientização sobre os danos morais causados pela pilhagem aumentou. No entanto, a cobiça por esses objetos, cujos preços dispararam, a leniência das sanções e a vulnerabilidade dos sítios em zonas de conflito são os desafios que precisam ser superados para conter o tráfico de, como chamam alguns, “antiguidades de sangue”.
Agnès Bardon
UNESCO
No outono de 2019, moedas de diferentes períodos, armas históricas, cerâmicas, fósseis e pinturas foram apreendidos em uma operação internacional que envolveu mais de cem países. Somente a alfândega afegã no aeroporto de Cabul interceptou 971 objetos do patrimônio nacional. E, em Madrid, objetos pré-colombianos raros – entre eles uma máscara de ouro Tumaco única – foram recuperados.
No total, mais de 19 mil artefatos arqueológicos e outras obras de arte foram interceptados, e várias redes internacionais de tráfico foram desmanteladas em duas medidas repressivas simultâneas – uma liderada pela Organização Mundial das Alfândegas (WCO) e pela Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), e a outra coordenada pela EUROPOL e pela Guarda Civil da Espanha.
O recorde de apreensões dá uma ideia da magnitude do tráfico ilícito de bens culturais nas últimas décadas, mas também da escala da resposta policial no âmbito internacional. A Convenção de 1970, relativa às medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, a exportação e a transferência de propriedade ilícita de bens culturais permanece como um ponto central na luta contra esse comércio clandestino.
Nos 50 anos de existência desse texto, a UNESCO contribuiu para aumentar a conscientização pública sobre os riscos do tráfico ilícito. Também ajudou os países signatários – que hoje são 140 – na elaboração de leis e medidas preventivas, e incentivou a restituição de bens deslocados ilegalmente.
Contudo, embora a legislação tenha se tornado mais rígida, a conscientização pública tenha aumentado, e os sistemas de monitoramento, rastreamento e autenticação de obras tenham melhorado, a quantidade de traficantes também se multiplicou – assim como sua eficiência e habilidade.
Investigadores, autoridades alfandegárias e especialistas enfrentam inúmeros obstáculos para conter esse tráfico, que agora está globalizado – a começar pela demanda atual por essas antiguidades e obras de arte. O comércio de bens culturais não é um fenômeno novo, mas nunca foi tão próspero. Impulsionado pelo entusiasmo de colecionadores, galerias e museus, o valor das obras de arte e antiguidades disparou. Em 2019, as vendas mundiais de arte foram estimadas em mais de US$ 64 bilhões, de acordo com o relatório, The Art Market Report 2020 (Relatório do Mercado de Arte 2020, em tradução livre).
Um comércio obscuro
Particularmente lucrativo, o mercado de arte atrai investidores em busca de oportunidades de investimento – mas também atores inescrupulosos. Cada vez mais, a máfia e as organizações terroristas estão envolvidas no tráfico ilícito, para lavar dinheiro ou financiar suas atividades.
A extensão do tráfico – que é clandestino por definição – é ainda mais difícil de ser avaliada, uma vez que as poucas estatísticas existentes são incompletas. Menos da metade dos Estados-membros da INTERPOL fornecem dados sobre o roubo de bens culturais cometidos em seu território. Apesar da falta de números precisos, estima-se, em geral, que o comércio ilegal de bens culturais é a terceira maior atividade criminosa internacional – depois do tráfico de drogas e de armas.
Embora sejam espetaculares e dignos de notícia, os roubos de pinturas – como de O grito, de Edvard Munch, em 2004 na Noruega ou, mais recentemente (em março de 2020), o de Jardim paroquial de Nuenen na primavera, de Van Gogh, nos Países Baixos – são apenas a ponta do iceberg. A maior parte desse comércio ocorre nas sombras, silenciosamente, ao longo de caminhos tortuosos que, muitas vezes, se originam em instituições religiosas, museus e sítios arqueológicos em países que estão enfrentando condições difíceis.
Depois de transitar por países intermediários, os objetos roubados ou saqueados costumam chegar às coleções particulares ou de comerciantes estabelecidos em capitais do Ocidente. Eles são acompanhados de certificados de exportação lavrados nos locais de trânsito, não nos países de origem – o que muito raramente é exigido pela legislação dos países de destino.
Escavações ilegais
Diferentemente de outras atividades criminosas, que são totalmente proibidas, o comércio de bens culturais ocorre, parcialmente, nas ruas. Muitas vezes, estatuetas, frisos ou cerâmicas antigas roubadas ou adquiridas ilegalmente são introduzidas diretamente no mercado de arte legal. Além disso, a maioria dos objetos saqueados durante escavações ilegais não estão listados em nenhum inventário. Consequentemente, eles não são abrangidos pela Convenção de 1970, e os países de origem não são capazes de determinar sua procedência.
Foi em resposta a essa preocupação, assim como à extensão dos saques pelo Estado Islâmico (EI) e por outros grupos armados no Iraque e na Síria, que, em 2015, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a Resolução 2199. Pretendeu-se com ela impedir o tráfico ilícito de antiguidades a partir desses dois países devastados pela guerra, pela imposição de sanções econômicas e diplomáticas a países e indivíduos que lucram com o comércio ilícito.
Leis e sanções mais rígidas são ainda mais necessárias, uma vez que o crescimento do comércio online tem sido uma bênção para os traficantes ao longo dos últimos 15 anos. Com um clique, compradores de qualquer parte do mundo podem adquirir estatuetas pré-colombianas ou cerâmicas antigas em completo anonimato. Em 2003, tijolos de um templo da antiga cidade de Larsa – que datavam da época do rei babilônico Nabucodonosor – foram saqueados no Iraque e, em 2005, foram colocados à venda no eBay. Quando ocorreu a operação da Interpol, no outono de 2019, quase 30% dos itens apreendidos já estavam sendo oferecidos à venda online.
Situação agravada pela pandemia
A pandemia da COVID-19 acentuou ainda mais esse fenômeno. Durante o confinamento, o Projeto de Pesquisa sobre o Tráfico de Antiguidades e Antropologia do Patrimônio (Antiquities Trafficking and Heritage Anthropology Research – ATHAR), uma equipe de antropólogos e especialistas em patrimônio especializados em redes digitais destinadas ao tráfico de arte, observou um ressurgimento da venda de objetos roubados nas redes sociais – especialmente do Oriente Médio e do Norte da África. O estudo investigativo realizado por esse parceiro da UNESCO levou o Facebook a proibir o comércio de objetos culturais históricos em sua plataforma online.
Esse foi apenas o primeiro passo. Em junho de 2020, como parte do 50° aniversário da Convenção de 1970, a UNESCO organizou uma reunião online de especialistas mundiais na luta contra o tráfico ilícito de bens culturais, a fim de examinar o impacto da COVID-19 sobre o problema e considerar as respostas para lidar com o aumento do tráfico.
Os especialistas recomendaram a criação de unidades policiais especializadas no monitoramento de plataformas online, para impulsionar a cooperação ativa no desmantelamento das vendas ilegais. Eles também solicitaram um uso mais sistemático das ferramentas criadas pela UNESCO e por seus parceiros – incluindo a Lista de Leis do Patrimônio Cultural Nacional da UNESCO, a Base de Dados de Listas Vermelhas, Red Lists Database, de bens culturais em risco do Conselho Internacional de Museus (ICOM) e a Base de Dados de Obras de Arte Roubadasm, Stolen Works of Art Database, da INTERPOL.
As apostas são altas. Rastrear a origem de uma antiguidade ou de uma obra de arte roubada não apenas permite apreender os traficantes e levá-los à Justiça, mas também abre caminho para que os objetos sejam devolvidos a seus países de origem. A Argentina, por exemplo, recentemente restituiu a seus vizinhos uma quantidade significativa de objetos culturais apreendidos em seu território.
Mais delicada é a questão da restituição de objetos saqueados durante o período colonial. Isso continua a ser uma fonte de tensão entre países com ricos acervos museológicos e aqueles que reivindicam a restituição de objetos que contribuem para sua identidade. Apoiada por um número crescente de países, essa reivindicação é, atualmente, cada vez mais ecoada pelo público em geral.
Em Pantera Negra, filme produzido em 2018 pelos Estúdios Marvel que obteve sucesso mundial, o filho do príncipe N’Jobu, arqui-inimigo do Pantera Negra, invade um museu em Londres para recuperar uma lendária arma wakandiana. Wakanda pode ser um país africano imaginário, mas o debate sobre a restituição de artefatos continua a ser muito real.
Leia mais:
Curbing the spoils of war, The UNESCO Courier, Oct./Dec. 2017
Stop the art thieves! The UNESCO Courier, Apr. 2001
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