
Olivette Otele: “A história dos negros da Europa foi atingida por uma amnésia parcial”
cou_03_21_our_guest_01_web.jpg

A presença de pessoas de origem africana na Europa geralmente é vista sob o prisma da escravidão e da colonização, o que obscurece uma história compartilhada muito mais antiga.
Entrevista por Agnès Bardon
UNESCO
O título do seu livro é African Europeans: An Untold History (Africanos europeus: uma história não contada, em tradução livre). É incomum se referir a pessoas de ascendência africana que vivem na Europa como africanos europeus. Por que a senhora optou por utilizar essa expressão?
A expressão “africano europeu” ou “afro-europeu” não é amplamente utilizada na Europa, enquanto seu equivalente – africano americano ou afro-americano – é comum do outro lado do Atlântico. Utilizei-a de uma forma um tanto provocativa, mas também, e mais importante, para realçar o fato de que as pessoas de origem africana têm uma identidade plural.
Os afro-americanos se apropriaram do termo, mas os africanos europeus são mais relutantes em utilizá-lo devido ao contexto histórico; isso porque, na Europa, eles são frequentemente remetidos à sua origem africana – mesmo que tenham nascido em solo europeu e possuam a nacionalidade do país onde cresceram. No entanto, penso que essa denominação tem o mérito de refletir a diversidade de origens, experiências e antecedentes das pessoas de origem africana.
A história dos negros na Europa geralmente é considerada como tendo começado nos séculos XVII e XVIII. A senhora mostra que eles já estavam lá há muito mais tempo.
Quando falamos da migração de pessoas da África para a Europa, tendemos a relacioná-la ao tráfico de escravos. No entanto, ela é muito mais antiga. Pessoas do continente africano estiveram presentes no Império Romano desde a Antiguidade. Na ausência de um censo, é difícil atualmente avaliar seus números. Entretanto, o que sabemos é que alguns deles se tornaram figuras ilustres – como o imperador Septímio Severo [145-211], que nasceu no que hoje é a Líbia, ou alguns pensadores, como Santo Agostinho [354-430] e Apuleio [124-170], que vieram do Norte da África.
Essa presença continuou ao longo dos séculos. Frederico II, rei da Sicília e imperador do Sacro Império Romano no período de 1220 a 1250, acolheu os africanos em sua corte e os empregou em seus serviços. Chegou a fazer de um deles, João, “o Mouro”, seu camareiro. Até o final do século XV, os muçulmanos árabes e do Norte da África governaram a maior parte da Península Ibérica. E, a partir de meados do século XV, famílias ricas no centro e no norte da Itália começaram a empregar criados vindos da África. Muitas pinturas renascentistas dão testemunho disso.
Portanto, há uma história compartilhada entre a África e a Europa, muito mais antiga e mais rica do que se possa imaginar. No entanto, parte dessa história não foi considerada suficientemente relevante para ser ensinada nas escolas. Nós nos acostumamos a ver a história pelo prisma do tráfico de escravos. Este momento histórico de alguma forma eclipsou, ou mascarou, o que veio antes. Como resultado disso, essa história foi atingida por uma amnésia parcial.
Como a percepção das pessoas de origem africana se alterou ao longo dos séculos na Europa?
Antes do século XVII, existia o preconceito de cor contra os africanos, é claro. No entanto, da Idade Média até à Renascença, a divisão entre cristãos e muçulmanos superava a maior parte das outras considerações. Além disso, esse preconceito também foi dirigido de forma virulenta contra outros grupos de pele branca, como os irlandeses, que eram vistos pelos ingleses como selvagens.
O verdadeiro ponto de virada foi o desenvolvimento do tráfico de escravos, quando portugueses, franceses, ingleses, holandeses, espanhóis, suecos e venezianos se envolveram nessa corrida frenética em busca de lucro. Teorias sobre a inferioridade racial dos africanos foram então desenvolvidas pelos europeus a fim de justificar o tráfico de escravos.
Teorias sobre a inferioridade racial foram desenvolvidas a fim de justificar o tráfico de escravos
Isso teve um efeito duradouro sobre a percepção dos africanos após 1700. Foi nessa época que os negros foram desumanizados e passaram a ser tratados como mercadorias. Isso está bem documentado de um ponto de vista histórico. Temos inúmeros diários de bordo, registros e livros contábeis que atestam isso.
A partir daquele momento, as identidades europeias foram percebidas como superiores devido ao seu poder econômico. De fato, o tráfico de escravos alterou a percepção das pessoas, mas também moldou e sedimentou identidades, acentuando a separação entre brancos de um lado e negros do outro.
O trabalho de historiadores está trazendo à luz capítulos da história de pessoas de origem africana na Europa que foram pouco explorados ou negligenciados até agora?
Sim, eu estou muito otimista quanto a isso. Só o fato de eu ter sido capaz de publicar um livro como o meu, e de ter tido essa resposta, é significativo. Esta é uma época muito emocionante para ser historiadora, porque é possível sentir que as linhas estão mudando – que está em curso uma reflexão que leva a uma visão diferente desse aspecto da história. E essa reflexão também começa a se traduzir em termos de ensino.
No Reino Unido, atualmente estamos tentando integrar o que chamamos de “História Negra” no currículo escolar. No momento, é apenas uma disciplina opcional. No entanto, no País de Gales, onde resido, a Assembleia Galesa já decidiu incorporá-la ao currículo. Esse é um passo importante.
Na França, desde a Lei de Taubira – que, em 2002, introduziu o ensino sobre o tráfico de escravos no currículo do ensino fundamental –, parte dessa história já está sendo ensinada. A situação varia muito de país para país, e ainda há muito a se fazer, mas estamos caminhando na direção certa.
Nesta altura, acredito que seria útil fornecer aos professores ferramentas para que se sintam à vontade para ensinar esses capítulos da nossa história – que não são apenas sobre a história da escravidão, abolição ou migração, mas que abrangem um campo de estudo muito mais amplo.
Como evoluíram, nos últimos anos, as abordagens relativas à memória do tráfico de escravos na Europa?
A memória da escravatura ainda encontra forte resistência. Vemos países oscilando entre dois extremos: vitimização de um lado e amnésia do outro. Os países resistem porque essa memória desafia a sua narrativa nacional. E, mesmo quando celebram personalidades do continente africano que deixaram a sua marca na história, eles não são capazes de reconhecer o papel que os afro-europeus desempenham atualmente na vida cotidiana.
Como resultado disso, eu me sinto desconfortável com uma abordagem que canoniza uns às custas de outros, embora obviamente reconheça que isso é preferível à amnésia completa. Além disso, quando celebramos a abolição, o aspecto histórico da resistência negra geralmente é obscurecido.
No entanto, essa resistência ocorreu, particularmente no sul da Europa, onde irmandades de escravos, inicialmente fundadas para discutir religião, se tornaram, a partir do século XV, locais de intercâmbio e de luta contra a escravidão por seus senhores brancos. Por exemplo, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi criada em Lisboa no ano de 1470.
Muitas vezes, o papel daqueles que lutaram ao lado dos abolicionistas também é esquecido. A realidade histórica é, portanto, muito mais complexa do que a que nos é normalmente apresentada.
Qual é a ligação entre essa história e a violência – especialmente da polícia – contra os negros?
A discriminação e a violência policial têm suas origens na história colonial. A forma como os corpos negros são tratados tem a ver com essa história. O movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) nasceu da raiva, mas também da dor, de um sentimento de impotência diante dessa discriminação. Ele encontrou eco na Europa simplesmente porque essa violência policial ecoa a discriminação sofrida pelos negros.
A violência policial tem suas origens na história colonial
Nesse sentido, eu percebo que a geração dos meus filhos tem uma abordagem muito diferente da de gerações anteriores. É também uma geração que não tem medo de desafiar o sistema ou desafiar a ordem estabelecida.
Quando eu era estudante, as pessoas pensavam que trabalhar duro para ter sucesso seria o suficiente para silenciar os racistas. No entanto, vemos que isso não é suficiente.
Os jovens de hoje já não hesitam em levantar suas vozes contra o racismo e a discriminação a que estão sujeitos. Eles também são mais livres e estão mais confortáveis com o fato de terem várias identidades – a de seus pais, a de suas origens e a da sociedade em que crescem.
Olivette Otele
É autora de African Europeans: An Untold History, é professora de História da Escravidão e Memória da Escravatura na Universidade de Bristol, no Reino Unido. Nascida em Cameroun e criada em Paris, ela é a primeira mulher negra a se tornar professora de história no Reino Unido.
Leia mais:
Racismo: o enfrentamento do impensável, O Correio da UNESCO, out./dez. 2020
The Slave trade: A peculiar cultural odyssey, The New Courier, Dec. 2004
O Correio da UNESCO contra o racismo, uma seleção de números e artigos sobre o tema (em inglês)
Assine O Correio da UNESCO para artigos instigantes sobre assuntos contemporâneos. A versão digital é totalmente gratuita.