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Ideias

O Alcorão, entre texto e contexto

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“Minaret Hats (2011), a series of photographs by Italian-born multimedia artist Maïmouna Guerresi, who converted to Islam after living in Senegal.
© Maïmouna Guerresi
Por que os muçulmanos não reagem com mais veemência contra as organizações terroristas que agem em nome de um Islã que eles não aceitam? Mahmoud Hussein responde essa questão por meio da análise da premissa da imprescritibilidade do Alcorão. 

Por Mahmoud Hussein

A grande maioria dos muçulmanos fica horrorizada com a regressão bárbara representada pelo Estado Islâmico (EI, Isis ou Daesh), assim como com sua reivindicação de falar em nome do Islã – um Islã com o qual a maioria dos muçulmanos não se identifica. Porém, ao mesmo tempo em que condenam o EI em um âmbito moral e humano, eles têm dificuldade de confrontá-lo no âmbito teológico. Eles tendem a rejeitar a organização como se ela existisse fora do Islã, afirmando que o discurso do EI não é muçulmano e, assim, eles lavam as mãos a respeito da questão. 
 
No entanto, na verdade, as coisas são muito menos nítidas, porque o EI afirma ter origem no Islã, e se refere de forma explícita ao Alcorão e ao Hádice. Para refutar o argumento do grupo, é preciso começar a aceitar um fato óbvio – de que o Islã não se manifesta em uma forma única. No passado, assim como agora sob os nossos próprios olhos, ele assume muitas formas diferentes e divergentes, algumas delas opostas e até mesmo hostis umas às outras. Dessa forma, nós podemos ver como o EI promove uma visão particular, com a intenção não de atrair pessoas, mas provocar o terror, não de converter almas, mas despertar os nossos instintos mais primitivos e homicidas. O grupo oferece uma visão distorcida do Alcorão e do Hádice.
 
O EI deve ser condenado em duas esferas. Por um lado, pela forma como ele seleciona e destaca fragmentos dos textos originais e, então, realiza a sua reorganização para que se adequem a uma agenda anti-humanista. Por outro lado, pela forma como ele traduz partes desses textos – cujo alcance é relevante no contexto da Arábia do século VII – em mandamentos que afirma serem absolutos e eternos. É dessa forma que o EI sacramenta a submissão da mulher ao homem e justifica a prática da escravidão. É como ele pode estigmatizar para sempre todos os judeus e todos os cristãos, com base em julgamentos impostos a certos judeus e a certos cristãos sob condições de conflito e em uma época que não tem qualquer relação com a nossa.
 
Restaurar o livre arbítrio
 
Por que tantos muçulmanos seculares, que compartilham essa opinião negativa sobre o EI, não fazem com que suas objeções sejam ouvidas de forma alta e clara? Porque eles teriam de admitir uma proposta radical. Eles teriam de aceitar de forma explícita o fato de que a Revelação contém ensinamentos atemporais e prescrições circunstanciais. Em outras palavras, eles teriam que questionar o dogma da imprescritibilidade do Alcorão.
 
Esse dogma é fundamentado no que parece ser à primeira vista uma lógica irrefutável: sendo o Alcorão a Palavra de Deus, e sendo Deus infalível, todos os versos do Alcorão devem ter necessariamente um alcance eterno e universal. Daí a crise de consciência que hoje confronta tantos muçulmanos, quando eles se deparam com versos que são compreensíveis no contexto da Arábia do século VII, mas que estão obviamente fora de sintonia em relação aos requisitos morais da atualidade.
 
Entretanto, essa crise é infundada. O dogma pode ser negado sem trair a verdade essencial do Alcorão. Melhor ainda, a forma de se alcançar a verdade essencial do Alcorão consiste em negar o dogma: porque o dogma não deriva do Alcorão em si, mas de uma premissa ideológica que se aderiu a ele desde o século IX – a saber, que a Palavra de Deus é consubstancial ao próprio Deus, parte de Sua natureza divina e eterna como Ele.
 
Porém, essa premissa contradiz totalmente o Alcorão. Nele, Deus e sua Palavra não têm o mesmo status. Deus transcende o tempo, mas Sua Palavra está implicada no tempo. A Palavra entrelaça o absoluto e o relativo, o universal e o particular, o espiritual e o temporal. É por isso que o Alcorão não pode ser lido como um corpo de mandamentos ao qual se deve aderir de forma literal, em todas as partes e para todo o sempre. 
 
Como esse dogma poderia ser aceito no mundo muçulmano por tanto tempo, quando, de forma clara, ele vai contra as evidências corânicas? O dogma prevaleceu apenas ao final de uma longa luta, que data do século IX, na Bagdá dos abássidas.
 
Esse período foi caracterizado por várias correntes de pensamento excepcionalmente ousadas. Os teólogos mutazilitas argumentavam que o livre arbítrio humano não era incompatível com o poder divino absoluto. Deus dotou os humanos com a capacidade para o julgamento racional e com a força criativa, chamada de qudra, graças aos quais eles podem agir livremente. Os falasifas constituíam outra escola racionalista, que se estabeleceu fora do campo teológico; seu objetivo consistia em englobar todos os campos do conhecimento, conforme a tradição filosófica grega.

 


Manuscrito do Alcorão do sultanato Mamluk (prateleira Masahif Rasid 14), parte do Registro Internacional Memória do Mundo da UNESCO, Biblioteca e Arquivos Nacionais do Egito.

Porém, mutazilitas e falasifas seriam confrontados com uma crescente e ainda mais poderosa corrente conformista. Como guardiões da tradição, juristas e teólogos, em suas respectivas disciplinas, se determinaram a destruir qualquer noção de livre arbítrio, por meio da afirmação de que ele desafiaria a onipotência de Deus. O impasse decisivo entre as duas correntes finalmente se expressou na forma como cada facção considerava a natureza do texto corânico.
 
Para os mutazilitas, o Alcorão foi “criado” por Deus, o que significa que ele é distinto de Deus e passou a existir em um momento específico de Sua criação. Portanto, isso implica uma dimensão temporal, o que deixa aos humanos alguma margem para interpretação. No entanto, para seus adversários, o Alcorão é “não criado”. Em outros termos, ele é consubstancial a Deus e compartilha a Sua eternidade. A partir desse ponto, torna-se menos importante entender o Alcorão do que se permeado por ele, absorver sua natureza divina por meio de uma leitura literal, repetida indefinidamente. Com isso, o texto adquiriu um status de verdade absoluta e intangível, da qual derivou a noção da imprescritibilidade corânica. 
 
Os princípios do argumento da imprescritibilidade saíram vitoriosos desse confronto. Assim, durante muitos séculos, a ideia do livre  arbítrio se perdeu no terreno islâmico e não mais apareceu novamente até o final do século XIX. 
 
Liderada por eminentes intelectuais muçulmanos, o pensamento reformista buscava enfraquecer a doutrina da imprescritibilidade, inspirando-se no espírito do Iluminismo e tomando como base disciplinas modernas como a história, a antropologia e a linguística. Sem questionar a origem divina da Revelação, o movimento se propôs a examinar a historicidade de sua manifestação terrena.
 
Como resultado, essa corrente foi contra os guardiões doutrinários que desacreditaram o novo pensamento, considerando ilegítima a sua ferramenta metodológica – o raciocínio crítico – que prevalecia nas ciências humanas e sociais. Conforme os guardiões do dogma, afirmar que a Revelação do Alcorão corresponde a qualquer coisa que não seja a vontade eterna de Deus – e imaginar que ela pode estar ligada de qualquer forma a algum contexto histórico específico – é uma aberração inventada por infiéis. Ela olha para o divino a partir de um ponto de vista externo. A prova é que essa ideia aberrante se fundamenta em argumentos retirados de disciplinas profanas, estranhas ao Islã.

À luz das crônicas do século IX

Agora, a questão que se coloca é a seguinte: podemos contornar essa objeção? Podemos mostrar o vínculo necessário entre texto e contexto, sem ter de recorrer às ciências seculares, mas tomando como base apenas os textos religiosos, considerados inquestionáveis pelos mais minuciosos guardiões do dogma?
 
A resposta é sim. Existem de fato textos religiosos que permitem essa interpretação e eles existem há muito tempo. Eles surgiram a partir de uma necessidade premente já reconhecida nas escolas corânicas no primeiro século do Islã. Os estudiosos precisavam compreender inúmeros versos de interpretação difícil, se
não impossível, sem examinar os aspectos em torno de sua Revelação.
 
Eles decidiram enfrentar esse desafio, voltando à fonte de todas as informações disponíveis a respeito da época da Revelação – os testemunhos deixados pelos companheiros do Profeta. Muitos desses seguidores nem sempre apreenderam o significado dos versos recitados pelo Profeta. Eles iam sozinhos, ou em grupos,
perguntá-lo a respeito disso. E o Profeta respondia explicando, comentando e ilustrando os diferentes versos.
 
Após a sua morte, a tarefa de transmitir o que haviam aprendido da boca do Profeta para as crescentes fileiras de novos fiéis coube aos seus companheiros – suas palavras agora enriquecidas por suas próprias memórias de quando e onde os versos haviam sido revelados a eles.

Após a morte dos últimos companheiros do Profeta, as pessoas começaram a reunir esses testemunhos e a escrevêlos. Na virada do século IX, surgiu uma primeira compilação chamada A vida do Profeta Maomé (Al-Sîra al-nabawîyya), assinada por Muhammad Ibn Is’haq. A essa compilação seguiram-se várias outras, notadamente as dos quatro grandes cronistas que trabalharam durante a dinastia abássida: Al-Wâqidî, autor do Kitâb al-Maghâzî (O livro da história e das campanhas), Muhammad Ibn Sa’d, que escreveu o Kitâb al-Tabaqât al-Kabîr (O livro das classes principais, também conhecido como O livro dos companheiros, ajudantes e seguidores); Al-Tabarî (839-923), autor do Kitâb al-Rusul wal-Mulûk (História dos profetas e dos reis); e Al-Balâdhurî, que escreveu o Kitâb Ansâb al-Ashrâf (Genealogias dos nobres).
 
O principal interesse dessas Crônicas consiste no fato de que elas nos contam a histórias da vida do Profeta, com os eventos principais seguindo uma linha do tempo irregular.
 
Graças a elas, nós possuímos um mapeamento aproximado dos momentos sucessivos da Revelação, o que nos permite situar cronologicamente centenas de versos, cada um relacionado ao outro, e também a colocar cada um deles em seu contexto apropriado.
 
Ao ler o texto do Alcorão à luz dessas Crônicas, somos tomados por um fato óbvio: em nenhum trecho do Alcorão é permitido confundir Deus e Sua Palavra. Em nenhum momento é permitido extrapolar a eternidade de Sua Palavra a partir da eternidade de Deus em Si. Uma leitura que coloca o texto de volta ao seu contexto nos leva a três conclusões fundamentais. A primeira: no Alcorão, a Palavra de Deus adota uma língua, uma cultura e uma forma de pensamento que reflete as preocupações da Arábia no século VII. A segunda: no Alcorão, a Palavra de Deus não é apresentada como um monólogo, mas como um intercâmbio do Paraíso com a Terra. Deus está conversando em tempo real com a comunidade dos primeiros muçulmanos, por intermédio do Profeta. A terceira: nem sempre Deus dá o mesmo peso à Sua Palavra. O Alcorão enuncia diferentes ordens da verdade, algumas absolutas e outras relativas, algumas eternas e outras circunstanciais.  

Tanto isso é verdade que às vezes Deus substitui certas verdades com outras, decretando a revogação de certos versos por meio de outros versos revelados posteriormente.

Este era o princípio da revogação, formulado no seguinte verso: “Nós não revogamos um verso ou fazemos com que ele seja esquecido, exceto quando nós apresentamos [um] melhor do que ele ou similar a ele” (Verso II, 106).
 
Assim, a partir desse ponto, o conceito de tempo no Alcorão se torna inevitável.
 
De fato, somente o conceito de tempo é capaz de restaurar a plenitude do poder de Deus. É exatamente porque Deus intervém temporalmente que Ele pode apresentar verdades relativas, vinculadas a diferentes circunstâncias. E, uma vez que as situações se alteram,  as verdades relativas se alteram com elas. Então, se acontecer de Deus dizer duas coisas contraditórias, tal ocorre porque a verdade se alterou nesse interim. Deus está sempre certo no momento em que Ele fala. Para entender as Suas verdades relativas, nós devemos apenas relacionar cada uma delas às circunstâncias nas quais elas foram proferidas. 
 
Nenhum verso pode ser “melhor” do que qualquer outro, se nós permanecemos no domínio do absoluto. Em termos absolutos, tudo é igual, e não Mahmoud Hussein é o pseudônimo compartilhado por Bahgat Elnadi e Adel Rifaat, dois escritores francoegípcios que publicaram vários textos de referência: Al-Sira (2005), Understanding the Qur’an Today (Entender o Alcorão hoje, em tradução livre, 2009) e, mais recentemente, Les musulmans au défi de Daech (Muçulmanos desafiados pelo EI, em tradução livre, 2016). há comparação possível. Para que um verso seja “melhor” do que outro, ambos devem existir no âmbito da relatividade. Além disso, eles não podem ser ambos verdadeiros, a menos que se relacionem a diferentes circunstâncias ou, em outras palavras, a tempos de mudança.

Assim, existem momentos sucessivos no Alcorão, tempos que são “antes” e “depois”, e mesmo momentos que apagam outros – portanto, uma dimensão realmente temporal. A conclusão é evidente por si só: a Palavra de Deus não pode ser confundida com Deus em Si. A Palavra não pode ser assimilada à essência divina de Deus. Nós não podemos – não devemos – ler o Alcorão como se cada um de seus versos incorporasse a divindade de Deus, como se o menor desvio representasse uma traição a Ele. 
 
Uma vez que a Palavra de Deus é separada do próprio Deus, e uma vez que a Palavra está envolvida na temporalidade humana, a postulação da imprescritibilidade corânica não pode mais ser defendida. Não apenas isso não reflete a verdade do Alcorão, mas até mesmo a contradiz. Com isso, os fiéis são chamados pelo próprio Alcorão a fazer uso de sua razão e a exercitar seu livre arbítrio, a decidir por si mesmos quais versos são vinculantes, e quais não mais lhes dizem respeito.
 
Então, o Alcorão deixa de parecer ao fiel um conjunto de mandamentos e proibições, que deve ser seguido em todos lugares e para sempre. Ele se torna mais uma vez o que foi durante 22 anos para o Profeta e seus companheiros: um discurso aberto sobre a reconstrução do mundo; um chamado para se pensar e agir com total responsabilidade; uma oportunidade oferecida a todos para encontrar o caminho de Deus na vida de todos os dias.
Mahmoud Hussein

Mahmoud Hussein é o pseudônimo compartilhado por Bahgat Elnadi e Adel Rifaat, dois escritores francoegípcios que publicaram vários textos de referência: Al-Sira (2005), Understanding the Qur’an Today (Entender o Alcorão hoje, em tradução livre, 2009) e, mais recentemente, Les musulmans au défi de Daech (Muçulmanos desafiados pelo EI, em tradução livre, 2016).