De acordo com o filósofo marroquino Ali Benmakhlouf, em sua origem, a charia não é um código fixo. É uma fonte espiritual, com uma orientação ética, para conter os abusos do poder político. Ele examina como a charia foi transformada em lei.
Por Ali Benmakhlouf
A palavra “charia” é um tema recorrente nas discussões atuais, carregando uma série de associações fantasmagóricas: reinos de terror, punição corporal,
repúdio às esposas, exigências extremistas de grupos terroristas, leis arcaicas dos primórdios do Islã, um conjunto de sanções incompatíveis com os direitos humanos, entre outras.
É essencial que se entenda que a constituição da charia, considerada como uma autoridade ou corpo de leis fixo que transcende o tempo e a história, serve principalmente aos interesses de regimes autoritários. Esses regimes encontraram a permanência de seu poder político em uma lei que é imune à mudança.
Etimologicamente, “charia” é uma palavra árabe que significa “avenida”, “abertura” ou “caminho”. O professor
Wael Hallaq da Universidade Colúmbia explica que a charia “era tanto uma forma de viver e ver o mundo quanto um corpo de crenças”.
O processo de transformação da charia em lei divina derivou de um esforço para interpretá-la, chamado de ijtihad. Foi o resultado de reflexões realizadas por eminentes juristas islâmicos, que se propuseram a “traduzir” os versos corânicos em normas legais.
Um século após a revelação do Alcorão, várias escolas de direito foram fundadas em todo o mundo islâmico, e elas tinham diferentes formas de avaliar a lei divina. No entanto, fossem quais fossem suas interpretações e as diferenças entre vários advogados e filósofos, todas as escolas concordavam que os textos sagrados do Islã eram apenas fontes, não o conteúdo real, da lei. Eles enfatizavam o fato de que a lei divina não seria encontrada em sua totalidade nos textos revelados. Em outros termos, não existe um código da charia como tal. Ela não é encontrada nas palavras do Profeta, nem no Alcorão.
Em épocas mais recentes, o teólogo egípcio Ali Abderrazik (1888-1966) chamou nossa atenção para o fato de que a charia é um guia espiritual, sem quaisquer diretivas legais. Portanto, permite-se que as pessoas constituam o próprio sistema – com base em outros fundamentos – para organizar a sua comunidade.
A charia e a política
Durante a Idade Média, iniciou-se um grande debate que ainda hoje tem importância. Ele envolveu duas correntes de pensamento opostas. Por um lado, havia aqueles que acreditavam que à palavra charia deveria ser mesclada a um significado político, de modo a lhe conferir estatura legislativa. Com isso, os juízes se tornariam o que Montesquieu descreveu em seu tratado Do espírito das leis (1748) como “nada mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres meramente passivos, incapazes de moderar a sua força ou o seu rigor”. Por outro lado, havia aqueles que acreditavam, pelo contrário, que a jurisprudência deveria ser tornada autônoma, permitindo que o juiz se fundamentasse na inspiração religiosa da charia para constituir, dentro do seu tribunal, um contrapeso para o poder político.
Segundo essa segunda linha de pensamento, o soberano detinha um poder discricionário, restrito em escopo, que poderia substituir a lei religiosa com normas administrativas aplicáveis em certas áreas e a tipos específicos de casos. Isso era chamado de siyasa shar’iyya (a política compatível com a lei revelada), um recurso que foi especialmente útil para conter os abusos do poder político, como explicado por Hallaq em seu livro An Introduction to Islamic Law (Uma introdução à Lei Islâmica, em tradução livre, 2009).
Em Estados pré-modernos, a charia tendia a ser dissociada do poder político, mesmo que o limite nem sempre fosse claro e variasse de um Estado para outro. Pelo contrário, em sociedades modernas pós-coloniais, a charia é considerada como uma parte do sistema legal, ainda que em alguns países o seu alcance frequentemente seja reduzido a questões de cunho pessoal (tais como casamento, herança etc.). O entendimento moderno da lei tem como base a codificação e o controle, o que a torna puramente um instrumento do Estado. A politização da charia é um fenômeno recente.
A fatwa se altera com o tempo
Assim, a charia é um conceito epistemológico que, durante um longo tempo, foi flexível e adaptável. O ditado que diz “a fatwa se altera com o tempo” mostra claramente que a opinião legal não era considerada uma verdade atemporal e imutável. De fato, em seu sentido original, a fatwa era uma opinião legal não vinculante. A lei estava sujeita a modificações por causa “das mudanças dos tempos ou […] das mudanças das condições sociais”, como Hallaq nos lembra em seu livro Authority, Continuity and Change in Islamic Law (Autoridade, continuidade e mudança na Lei Islâmica, em tradução livre, 2001).
Na verdade, a necessidade de mudança é reconhecida de forma explícita como a principal característica da lei divina. O filósofo medieval
Al Farabi (870-950), entre outros, descreveu como sucessivos legisladores modificariam a lei. Em seu Livro da religião, Farabi explica que essas mudanças servem para: a) preencher a lacuna deixada por um legislador anterior, que promulgou leis apenas sobre matérias da mais alta importância, da maior utilidade, valor ou eficácia para reunir as comunidades, deixando o resto para outra pessoa; e b) para alterar várias decisões do predecessor e para promulgar outras normas que ele entendeu serem
mais apropriadas para a época.

Deduzimos disso que a lei divina é inseparável de sua interpretação humana, com o entendimento de que a interpretação deve ser deixada para especialistas competentes, e não para pessoas sem instrução.
“Assim, a lei islâmica também é caracterizada pelo pluralismo legal”, afirma Hallaq na obra An Introduction to Islamic Law. “Não apenas porque ela reconhece os costumes legais e os leva seriamente em consideração”, ele explica, “mas também porque ela oferece uma série de opiniões sobre um e o mesmo conjunto de fatos”. É por isso que Hallaq vê como irônico
o fato de os colonizadores europeus acusarem a lei islâmica de ser rígida para justificar sua substituição pelos novos códigos napoleônicos. Assim começou a desmontagem da charia, que contribuiu para a percepção desta como a-histórica e atemporal.
Quando uma orientação espiritual se torna uma ordem
A desmontagem continuou durante a segunda metade do século XX, quando a palavra charia tomou a forma de ordem ou decreto por meio da fatwa e a ela foi atribuído poder de decisão, embora a fatwa represente apenas um parecer consultivo.
Com o desenvolvimento do direito moderno, das leis que emanam do poder do Estado, e com a disseminação de instituições parlamentares em países anteriormente colonizados pelas assim chamadas potências ocidentais (principalmente a França e o Reino Unido) – a lei da charia assumiu seu lugar juntamente aos sistemas legais formatados principalmente a partir dos códigos napoleônicos. É o “espartilho do procedimento parlamentar” que deu à lei islâmica a sua autoridade, como escrevem
Baudouin Dupret e
Leon Buskens, na introdução de seu livro La charia aujourd’hui (A charia hoje, em tradução livre, 2012).
Atualmente, as constituições das diversas nações muçulmanas mencionam a charia de formas diferentes. Em um país, é uma questão de observância; em outro, de referência. Em nenhum lugar se considera que ela deriva de qualquer lei codificada.
É preciso reconhecer que a palavra charia não é suficientemente clara, nem se refere a um conjunto de normas familiares a todos, o que nos permitiria dizer com autoridade que ela é aplicada aqui ou ali. Parafraseando as palavras de Dupret, quanto mais tentamos fixar o que a charia é, mais difícil é capturar suas formas e suas funções. Exceto em termos de poder, de política e de ideologia, como podemos realmente definir a charia?